Vladimir Batista, estudante do terceiro período do curso de Letras do UniAnchieta, decidiu seguir essa graduação após atuar como engenheiro eletrônico por 25 anos. Professor de inglês e escritor, com um livro publicado pela Amazon (O Amor na Nuvem De Magalhães), Vladimir resolveu “abraçar sua paixão pelas palavras”, segundo afirma, e desde o início do curso vem mostrando a que veio, com talento e dedicação exemplares. Neste período, entre outros trabalhos, destacou-se pela elaboração de um artigo, integrando os estudos do componente curricular de Língua portuguesa II, disciplina que trata precisamente das palavras: como se formam e como se transformam, atravessando tempo e espaço.

No artigo, intitulado As voltas que as palavras dão, o autor estabelece um percurso por tempos e espaços diversos, ensinando de forma poética e descontraída que palavras vêm e vão. Entre idas e vindas, ficamos sabendo que um famoso compositor brasileiro despretensiosamente criou uma expressão que ganhou lugar em renomado dicionário, que o sentido original da palavra “crápula” vem de longe e que o nosso conhecido “deletar” ressurgiu das cinzas do latim.

O Em Foco abre espaço e compartilha o artigo. Vamos a ele e boa leitura!

As voltas que as palavras dão

Na canção Pick yourself up, composta para o musical de Hollywood Ritmo Louco (Swing Time), de 1936, há os seguintes versos: “Pick yourself up / Dust yourself off / And start all over again” (KERN; FIELDS, 1996), cantados no filme por Fred Astaire e Ginger Rogers em uma divertida esquete que precede um de seus memoráveis números de dança (RITMO…, 2005). De um esforço livre, é possível começar a traduzir esses versos para: “Levanta / Sacode a poeira…”. Nesse momento, embora seja mais exato completar com “E começa tudo de novo”, é irresistível a um brasileiro se aventurando na tradução não prosseguir com “E dá a volta por cima”. Isso porque os versos “Levanta / Sacode a poeira / E dá a volta por cima” estão indeléveis na cabeça de quem conhece o sucesso composto por Paulo Vanzolini, Volta por cima, gravado pela primeira vez em 1962, pelo intérprete Noite Ilustrada (MUSEU…, 2012). Teria a expressão viajado do cancioneiro dos EUA para o brasileiro?

Na verdade, não há registro de que o compositor paulistano, morto em 2013, tenha se baseado no standard americano. Talvez o tenha feito inconscientemente, mas não é possível saber. Assim ele rememorou: “Volta por cima, eu não me lembro como surgiu. Surgiu como tudo. Deu-me a ideia de fazer um samba, e fiz.” (VANZOLINI, 2013). O fato é que a origem da expressão dar a volta por cima está associada pelo Dicionário Aurélio à letra de Vanzolini (VOLTA…, 2010); fato do qual ele se orgulhava: “Volta por cima é uma expressão que eu que inventei. Vai ver o que se chama o peso da vaidade. Um dia eu estou aqui, me ligaram e disseram: Você sabe que você está no Aurélio? Volta por Cima está no Aurélio!” (VANZOLINI, 2013). Felizmente, é justamente esse trecho em específico que não encontra correspondente no refrão da canção americana, ratificando sua possível contribuição lexicográfica, apesar dos versos anteriores serem eminentemente similares aos de Pick yourself up.

Mesmo com a honra de ter sua obra citada no Aurélio, Paulo Vanzolini não ficou plenamente satisfeito. No dicionário consta apenas a definição: “superar uma situação difícil” (VOLTA…, 2010). Vanzolini ponderou: “(…) o dicionário não pegou bem o que eu queria dizer e se o dicionário não pegou bem, a culpa é minha. Porque quando eu dizia dar a volta por cima não quer dizer só vencer as dificuldades, mas é vencer com grandeza, vencer com generosidade, …” (MUSEU…, 2012). Ou seja, tal é a dinamicidade da língua, que a expressão já teria mudado de sentido com relação ao intencionado inicialmente, logo ao ser dicionarizada.

Pelo menos, nesse caso não houve uma inversão de valor, como aconteceu nas jornadas de palavras como, por exemplo, esquisito. No romance Lucíola, de 1862, José de Alencar usou o verbete algumas vezes com uma conotação positiva, com a acepção de requintado: “O vestido que o moldava era cinzento com orlas de veludo castanho e dava esquisito realce a um desses rostos suaves, (…)” (ALENCAR, 2018, capítulo 2, 7 par). No entanto, hoje em dia, esquisito é muito mais usado no Brasil com uma conotação negativa, de esdrúxulo, anormal, como no verso “Festa estranha, com gente esquisita…” (RUSSO, 2020), do rock Eduardo e Mônica, de 1986, da banda Legião Urbana.

O Dicionário Houaiss evidencia essa guinada do significado. No original latim, exquisĭtus (particípio passado de exquīro) tem o sentido de “procurado diligentemente, distinto”. Daí veio a primeira acepção em português, de “dificilmente ocorrente, raro, precioso”. Mas também evoluiu para “excêntrico” e, finalmente, no Brasil, para “feio, desagradável” (HOUAISS; VILLAR, 2004, p. 1241). Isso faz com que o verbete prime como um exemplo de falso cognato (palavras com grafias semelhantes mas significados diferentes) entre o português e outros idiomas, como o espanhol (exquisito) e o inglês (exquisite), ambos mantendo seus usos mais próximos do original latim, frequentemente relacionados a iguarias ou bebidas, no sentido de delicado, delicioso (EXQUISITE…, 2020); (EXQUISITO…, 2014).

Mas se você quiser degustar uma bebida esquisita (no bom sentido) lá na Finlândia, há de ter cuidado para não exagerar e acordar depois com uma terrível krapula. Esta é a palavra para ressaca, em finlandês, nesse sentido de mal-estar no dia seguinte à bebedeira; bem diferente do uso popular de crápula no português, com o significado de canalha, patife. Entretanto, a origem em comum, o latim crapŭla, assim como o étimo mais remoto, o grego kraipálē, estão mais próximos do sentido da Finlândia, com a acepção de embriaguez. Mais uma vez, o Dicionário Houaiss (2004, p. 861) encadeia a trajetória da palavra na nossa língua, com a acepção inicial de “excesso de hábitos desregrados, como a bebida”, daí para “vida devassa”, depois, por metonímia, para “o conjunto de pessoas libertinas” e, finalmente, o conhecido adjetivo para quem é “inescrupuloso e vil”.

Mas se são raros os falsos cognatos entre o português e o finlandês, mais comuns são os entre nossa língua e o espanhol, capazes de causar embaraços a aprendizes de um ou outro idioma. Aliás, embaraçada, verbete usado em português como envergonhada (assim como no inglês embarrassed e no francês embarrasée), é o mais conhecido desses “falsos amigos”, uma vez que embarazada, em espanhol, é comumente usada no sentido de grávida (EMBARAZAR…, 2020). Isso se tornou um prato cheio para mal-entendidos em comédias ou para toques humorísticos em lições de espanhol. E como essa diferença se estabeleceu?

Todas essas formas se originaram do português embaraço. A palavra viajou do português para o espanhol, depois passou (incólume) para o francês e finalmente para o inglês, sempre com um sentido de obstrução, ou vergonha (EMBARRASS…, 2020). Embaraçar vem de baraço (HOUAISS; VILLAR, 2004, p. 1115), palavra também em português que significa laço e que tem origem controversa: Houaiss e Villar (2004, p. 398) e Cunha (BARAÇO…, 2012) sugerem que ela é derivada do árabe mara{s}a (“corda”). Já o Diccionario de la lengua española da Real Academia Española defende uma origem celta, evocando o irlandês antigo barr (“tufo”) (EMBARAZAR…, 2014). De qualquer maneira, embaraçada carregou o sentido de enlaçada, obstruída, atrapalhada, daí para vexada. Porém, na Espanha, o costume das mulheres de vestirem uma cinta (ou se enrolarem em tiras de tecido) durante a gestação teria gerado tanto a expressão encinta como embarazada para se referirem a grávida (EMBARAZAR…, 2020).

Além de embaraço, há outras palavras de origem portuguesa que viajaram a outras paragens, e algumas até voltaram à nossa língua, de forma diferente. O nome do pássaro dodô, por exemplo, conhecido por ter sido lamentavelmente extinto pela ação do homem no século XVII, veio ao português do inglês dodo, que, por sua vez, havia derivado da palavra em português doudo, forma alternativa de doido (HOUAISS; VILLAR, 2004, “dodó”, entrada 2, p. 1070), por causa do jeito meio apalermado da ave. Já o verbete doido tem origem controversa. Segundo o Dicionário Houaiss, sobre a raiz doid-, as alternativas mais prováveis são que tenha vindo do latim tollitus (“tolhido”, “obstruído”), que derivou para toldo e depois para o galego-português doudo. Ou, talvez, essa forma teria vindo da raiz indoeuropeia dheu- com o sentido de “fumaça”, o que poderia “obscurecer os sentidos” (HOUAISS; VILLAR, 2004, p. 1071).

As palavras, como vemos, parecem dar mais voltas que Fred Astaire e Ginger Rogers bailando pelo salão. E muitas vezes voltam de suas origens de outra forma, e mais fortes. O latim delēre, por exemplo, com o sentido de apagar, destruir, derivou – na mesma acepção – para o português delir (HOUAISS; VILLAR, 2004, p. 932), que, com o tempo, caiu em desuso. O verbo original em latim, no entanto, parece ter se “levantado e sacudido a poeira”: seu particípio passado deletus derivou para o inglês to delete o qual, recentemente, com a popularização de anglicismos da área da informática, retornou amplamente difundido para o nosso vocabulário, aportuguesado como deletar (HOUAISS; VILLAR, 2004, p. 931). O velho latim delēre já pode comemorar: deu a volta por cima e está novamente no Aurélio, no Houaiss e em todos os dicionários!

REFERÊNCIAS

ALENCAR, José de. Lucíola. 2. ed. Barueri, SP: Ciranda Cultural, 2018. [versão iPad Kindle]. Retirado de: https://www.amazon.com.br/Luc%C3%ADola-Com-questões-comentadas-vestibular-ebook/dp/B07DRR2MXP/.

BARAÇO. In: CUNHA, A. G. da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 2012. [versão iPad Kindle]. Retirado de: https://www.amazon.com.br/Dicionário-etimológico-portuguesa-Antônio-geraldo-ebook/dp/B0722R7M8Y/.

EMBARAZAR. In: ANDERS, V. et alli (2001 – 2020). DEEL – Diccionario Etimológico Español en Línea. Disponível em: http://etimologias.dechile.net/?embarazar. Acesso em: 5 abr. 2020.

EMBARAZAR. In: Diccionario de la lengua española de la Real Academia Española, La 23.ª edición (2014). Disponível em: https://dle.rae.es/embarazar. Acesso em: 5 abr. 2020.

EMBARRASS. In: Dictionary by Merriam-Webster (2020). Disponível em: https://www.merriam-webster.com/dictionary/embarrass. Acesso em: 5 abr. 2020.

EXQUISITE. In: Dictionary by Merriam-Webster (2020). Disponível em: https://www.merriam-webster.com/dictionary/exquisite. Acesso em: 5 abr. 2020.

EXQUISITO. In: Diccionario de la lengua española de la Real Academia Española, La 23.ª edición (2014). Disponível em: https://dle.rae.es/exquisito. Acesso em: 5 abr. 2020.

HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, (1ª reimpressão) 2004.

KERN, Jerome; FIELDS, Dorothy. Pick Yourself Up (1996). Disponível em: https://www.lyrics.com/lyric/2520518/Fred+Astaire/Pick+Yourself+Up+%5BSwing+Time%5D. Acesso em: 5 abr. 2020.

MUSEU da Canção (2012). Disponível em: http://museudacancao.blogspot.com/2012/11/volta-por-cima.html. Acesso em: 5 abr. 2020.

RITMO Louco. Direção: George Stevens. EUA: Warner Bros, 2005. 1 DVD (103 min), NTSC, P&B. Título Original: Swing Time.

RUSSO, Renato. Eduardo e Mônica (1996 – 2020). Disponível em: https://www.cifraclub.com.br/legiao-urbana/eduardo-monica/letra/. Acesso em: 5 abr. 2020.

VANZOLINI, Paulo Emílio. Vanzolini por Vanzolini. Cad. hist. ciênc., São Paulo, v. 9, n. 1, jun. 2013. Disponível em: http://periodicos.ses.sp.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-76342013000100021&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 5 abr. 2020.

VOLTA. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5. ed. Rio de Janeiro: Positivo Soluções Didáticas Ltda., 2010. Versão 1.06. Aplicativo Móvel Aurélio Digital.

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